Livro tem idade?
(Dolores Prades | Outubro 2012)
Está programado para acontecer nos próximos dias 5 e 6 de outubro o Colóquio Internacional
PROALE I – Esses livros sem idade, na Faculdade de Educação da UFF. O interesse
por este tema tem sido também recorrente entre as solicitações de leitores da
Revista Emília. A preocupação com as questões em torno das idades no livro para
crianças e jovens está no ar, não resta dúvida.
É natural que, com a
intensificação da reflexão sobre o livro infantil e juvenil e sobre todos os
temas em torno da formação de leitores, e a busca progressiva pela sua
desinstrumentalização, algumas das práticas em uso, alguns rótulos passem
finalmente a ser questionados. A mudança de critérios de valoração, do próprio
entendimento do significado e abrangência do livro e do que seja esse leitor,
implicam e pressionam para uma revisão de velhos procedimentos e praticas.
A reação de muitos – editores, autores, ilustradores e
mediadores – frente à rigidez das faixas etárias leitoras indicadas nos livros
decorre deste processo de reflexão sobre o livro infantil, assim como de uma
tendência contemporânea marcante onde o livro ilustrado se impõe rompendo a barreira
das idades. Não é de hoje que uma reação a tais rótulos se verifica. Tanto que
esse enquadramento vem sofrendo uma visível flexibilização, seja pelo seu uso
em termos menos rígidos, seja, como na ponta mais avançada do mercado, pela sua
simples desconsideração.
A adoção de faixas etárias para indicar os leitores de um
determinado livro, além de promover uma nivelação arbitrária, reduz e limita a
vida e a abrangência dos livros. A diversidade dos níveis leitores entre os
leitores de uma mesma idade, seja pelas diferenças de escolaridade, culturais
ou econômicas - como a proposta alternativa de Nelly Novaes Coelho de
conceituação, não mais por idade, mas por nível leitor – já puseram por terra a
adoção de faixas etárias há algumas décadas. A sobrevivência das faixas
etárias, tal como persiste hoje, atende exclusivamente a exigências do mercado
escolar.
A origem dos indicadores de faixas etárias faz parte de todo
um aparato maior que pouco a pouco vai sendo criado para orientar o trabalho de
“leitura literária” dentro da escola. Desde o início, e isso coincide com o
momento de afirmação internacional da “literatura infantil e juvenil” das
décadas de 1950/1960, a indicação da idade foi uma forma de orientação dos
mediadores (família, escola, etc) que, pela primeira vez, se deparavam com uma
produção voltada especificamente para um destinatário que não era diretamente
ele. Esse apoio para a escolha dos títulos por mediadores pouco sintonizados
com a natureza dessa nova produção e com uma oferta de mercado cada vez maior
talvez tenha tido o seu papel nestes primórdios.
Mas o que inicialmente foi uma orientação acabou virando uma
norma que, tal como ainda existe hoje, se transformou numa camisa de força
tanto para os mediadores que se acomodam e ficam reféns desses critérios, como
dos livros que, quando bons, se perdem ou esgotam na faixa etária. Quem inventa
e determina esses limites e critérios? Na maior parte das vezes não é nem o
autor, nem o ilustrador, mas o editor que quando recebe um original lhe dá forma
para encaixá-lo no seu catálogo. E assim, se muitos textos originalmente podem
servir a muitas idades, a escolha do ilustrador, do formato, da tipologia, a
própria concepção do produto dada pelo editor o coloca dentro de uma das
gavetas que ele mesmo criou.
O mundo editorial se apropriou desses recursos e criou todo
um aparato que acompanha os livros escolares (indicadores, notas, guias,
biografias, etc.). São os editores que, de acordo com as suas concepções de
infância, juventude, leitura, literatura, põem em movimento essa roda que, na
maior parte das vezes, deixa de lado critérios referentes à análise literária.
E isto é tão visível que, se olharmos tudo o que se produz neste mercado, essa
adequação aos critérios escolares salta aos olhos em detrimento de critérios
mais próximos da qualidade literária e artística.
Colocar em questão a rigidez desses indicadores, não quer
dizer que toda e qualquer orientação seja descartável, principalmente numa
realidade onde muitos mediadores (sejam familiares ou professores) efetivamente
não estão conectados com o mundo da leitura e desconhecem muitos de seus
códigos e de suas possibilidades. Nesse sentido e por isso mesmo é fundamental
que as editoras façam seu papel de apresentar seus livros e orientar seus leitores,
porém o que faz a diferença é como isto se faz e onde recai o peso na relação
entre subordinação & formação. Isto é a opção entre os critérios mais
fáceis já em vigor no mercado, ou um trabalho mais consistente de formação de
mediadores, visando a médio e longo prazo, ainda que como propósito, a sua
autonomia e independência.
A ponta da produção do livro para crianças e jovens mostra –
na verdade sempre mostrou - que os bons livros, mesmo aqueles com destinatários
bem definidos pelo seu autor, no limite não têm idade, pois certamente
encontrará leitores sensíveis em qualquer idade. Não são poucos os leitores
adultos que se encantam pelos livros ilustrados. E essa tendência tende a
crescer na medida em que esses livros sofisticam suas linguagens textual e
imagética e que os leitores se tornam mais sensíveis, mais abertos e passam a
enxergar sem preconceitos o livro infantil.
Mas não só isso, pois, se olharmos para o mercado, vemos que
muitas das sagas juvenis mais vendidas abarcam um público que varia e se
estende por muitas faixas etárias. Nesse sentido, inversamente ao que foi dito
acima, leituras mais fáceis também conquistam leitores que pelo seu histórico
de leitura se identificam com esse tipo de livro mais fácil e descartável.
Afinal somos todos leitores, não?
Com tudo isso quero dizer que, pensando do ponto de vista do
mediador que orienta, indica e sugere a leitura para leitores ainda sem
autonomia, o melhor critério deve ser a sua identificação com o livro, a sua
capacidade de promover e dar conta de uma conversa entre livro e leitor. Isto
é, de levar ou acompanhar a imaginação do leitor para onde as páginas do livro
levarem, sem medo dessa viagem desconhecida que nenhum critério pode
previamente estabelecer ou limitar.
E no caso dos leitores com certa autonomia? Nada pior do que
definir previamente se o livro é ou não adequado à “sua idade”, nada pior do
que um livro que traga qualquer rótulo. A esses leitores que estão em fase de
formação, de descoberta e de construção de critérios e de seu gosto literário:
permitamos que a leitura “rapte suas almas”, como disse Pascal Quignard. Ou,
como disse Proust, no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, quando a
avó do pequeno Marcel diz à sua filha: “Minha filha /... / eu não teria coragem
para presentear a esse menino algo mal escrito.”*
* Citações extraídas de A alma do leitor: a educação como
gesto literário, de Fernando Barcena (Bogotá: Asolectura, coleção Primero
Lector 11, 2012).
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