Iepê, cidade que lê
Reportagem de Maria Lígia Pagenotto
Fotografias de Luiz Dantas
Quando assumiu, há um ano e meio, a direção pedagógica da Escola Municipal de Educação Fundamental João Antônio Rodrigues, em Iepê, a 540 quilômetros da capital paulista, Ieda Maria Monteiro logo tratou de promover mudanças na biblioteca. Livros dispostos ao acaso em prateleiras escuras, paredes vazias e cores apagadas não combinavam com ela – um lugar assim, na opinião da pedagoga, jamais chamaria a atenção da criançada. “Biblioteca tem de ter vida”, prega.
A mudança começou pelas cores. Móveis escuros foram repintados em tons vivos. A mesa e as cadeiras para leitura foram trocadas de lugar na sala, de modo que o espaço fosse melhor aproveitado. Sofá macio, cortinas para diminuir a luminosidade e um tapete aconchegante terminaram por compor o novo ambiente. As paredes, porém, ainda pediam algo. “Foi então que recebemos uma coleção de arte, e tivemos a idéia de enquadrar os pôsteres”, lembra Ieda. Conta a pedagoga, ela mesma ex-aluna da escola e leitora voraz desde seus tempos de garota, que a Biblioteca Olavo Bilac existe há cerca de 30 anos e foi ela, junto com outros colegas, quem ajudou a criar o espaço.
Em cada classe, do 1º ao 5º ano, há um lugar batizado de “Cantinho da Leitura”, com estantes cheias de livros provenientes do acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). “Quando chegam as obras, separamos o que pode interessar a cada ano. Uma parte fica na biblioteca enquanto outros livros são espalhados pelos cantinhos das salas de aula, para os alunos manusearem diretamente”, diz Ieda. A professora Marta Atencia, do 2º ano, explica que o sentido do “cantinho” é facilitar ao máximo o acesso da criança ao livro. “É para estimular, mesmo, a curiosidade deles. Deixo-os manusearem à vontade, disputarem o livro”, revela. Quem quiser, leva um para casa, que deve ser devolvido na emana seguinte.
Expressando o que sente
É nesta faixa etária, na qual a criança começa a se alfabetizar, que a professora explora ao máximo o recurso de contar histórias para os pequenos. Ela monta com os alunos fichas das palavras ouvidas durante a narrativa e, depois, pede para eles escreverem essas palavras. “É muito fácil ver os progressos na criança que tem mais estímulo para a leitura e sabe aproveitar isso – ela se diferencia das demais em todas as matérias”, acredita Marta, professora há 17 anos.
A mesma opinião tem Márcia Regina Costa Cardoso, professora do 5º ano. Ela chama atenção para os avanços conquistados nas aulas de Matemática, especialmente. “Os alunos não liam os problemas com atenção ou, se liam, não compreendiam – já queriam logo saber se era conta de ‘mais’ ou de ‘menos’ –, tinham preguiça de tentar entender”, recorda-se. Segundo ela, o quadro começou a mudar quando foi introduzida a pedagogia de projetos na escola. Com ela, a leitura, aos poucos, ganhou mais importância na escola. “No meu cantinho da leitura tem de tudo, estou sempre falando para eles levarem livros para casa, mostrarem para os pais, os amigos”, afirma Márcia. “Acho que com isso eles passaram a ler melhor nas entrelinhas. A Matemática ficou mais clara, o problema ficou mais fácil de ser solucionado”, diz.
A cada semana, a Escola João Antônio Rodrigues promove o projeto Sala de Leitura. Os alunos das diferentes séries escolares se revezam, então, para ouvir histórias contadas pela monitora Débora Adna Palma Rocha, de 20 anos, estudante de letras e ex-aluna da escola.
Ao final da leitura, realizada na biblioteca, eles são estimulados a produzir algum trabalho sobre o que foi lido. “Pode ser um texto, uma dramatização, um desenho, o que quiserem”, explica a jovem. Depois fazemos uma exposição num painel pregado na parede da biblioteca, e renovado semanalmente. “Nossa proposta, com isso, é fazer o aluno perder o medo de expressar o que sentiu com aquela leitura”, explica a pedagoga Ieda Monteiro.
Neste dia também cada aluno escolhe um livro da biblioteca para levar para casa. Depois, na sala de aula, quem quiser comenta sobre o que leu. “Não é uma tarefa obrigatória, mas sim uma forma de estimular o contato com o livro. Penso que se a criança não leu naquela semana, alguém da casa pode ter lido, ao menos folheado o livro”, argumenta Ieda.
Filhos e pais que lêem
A professora da turma do 3º ano da João Antônio Rodrigues, Elcimara Gomes da Mota, acha que o livro, para os alunos de Iepê, desperta especial interesse porque se destaca na realidade doméstica das crianças. “O município é pequeno, poucos alunos têm computador em casa, o livro chama atenção”, argumenta. Para ela, um diferencial importante da escola está em envolver os pais nas atividades de leitura dos alunos. “Isso é feito nos finais de semana, quando acontecem oficinas de leitura. Os pais são incentivados a pegar livros na biblioteca e a escrever”, explica.
A responsável pela cozinha da João Antônio Rodrigues, Cássia Regina Pelim Damásio, é uma das mãesleitoras de Iepê, além de funcionária da escola. Suas três filhas herdaram o gosto pelos livros. “Adoro revistas e livros. O estilo varia – pode ser Érico Veríssimo, Machado de Assis ou Sidney Sheldon”, diz Cássia.
Sua filha mais velha, Carolina, de 22 anos, estudante de Direito, é responsável pela brinquedoteca de Iepê, que funciona junto à Biblioteca Municipal, na praça mais movimentada da cidade. Quem cuida deste espaço é uma organização não-governamental, a Amigos da Cultura, formada em sua maioria por jovens que curtem saraus literários e musicais – uma irmã de Carolina, Juliana, de 19 anos, também faz parte do projeto. Na brinquedoteca, Carolina promove oficinas de leituras com crianças, entre outras atividades. Ela gosta tanto das letras que, junto com o amigo Anderson Douglas da Silva, estudante de Pedagogia, animou-se a escrever e produzir um livro de poesias e reflexões, publicado com recursos próprios.
Primeiras leituras
Na Escola Municipal de Educação Infantil Dona Juventina Zago de Oliveira, para crianças de zero a seis anos, os alunos fazem poesias e participam de saraus, da mesma forma que os maiores. “Temos leitura todo dia e um cantinho para livros nas classes”, diz a diretora Vera Lúcia Braga Dias. “Eles estão começando a conhecer as letras. Eu leio e eles recontam a história a seu modo, atividade que adoram”, afirma a professora do Pré Eliene Nunes.
Rosicléia Barreto, mãe de dois alunos da escola, está feliz com o método utilizado e acha que se a criança não pega no livro desde pequena não aprende nunca a usá-lo. “Não tenho muito tempo para ler para minhas crianças, meu marido é quem lê. As crianças cobram da gente, trazem sempre livros para casa.”
No município só não tem contato com livros quem não quer mesmo. No Espaço Amigo Casa da Criança, mantido pela prefeitura, destinado a ocupar os pequenos com atividades fora do horário escolar, há uma sala especialmente dedicada aos livros infantis. Lá as crianças se sentam em roda e ouvem histórias, desenham sobre o que ouviram e produzem todo tipo de textos.
Município bem avaliado
Em Iepê parece haver um apreço especial pelas atividades literárias. “A leitura sempre foi bem trabalhada nas escolas aqui”, conta Maria Alves da Silva Ruela, assessora técnica da atual Secretária Municipal de Educação, Aliete Aparecida Bispo da Silva. No dia 24 de junho, data de fundação de Iepê, o município se mobiliza em torno de uma grande festa e os alunos das três escolas – duas municipais e uma estadual – apresentam seus trabalhos. Este ano muitos iriam recitar poemas produzidos ao longo do primeiro semestre nas salas de aula.
O incentivo à leitura já rendeu à cidade resultados quantificáveis, tanto no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), realizado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, quanto no Prova Brasil, avaliação que veio complementar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e foi realizada, pela primeira vez, em 2005. Segundo dados da última avaliação, na qual, pela primeira vez, foi divulgado o desempenho de cada escola, a média da Escola Municipal João Antônio Rodrigues, a única administrada pela prefeitura, foi de 183,16 pontos em Língua Portuguesa e 187,33 em Matemática, no nível de ensino equivalente à 4ª série (o total possível era de 350 pontos). Para se ter uma idéia, esta colocação deixaria Iepê em quarto lugar em um ranking com todas as capitais de estado – só perdendo para Campo Grande (MS), Curitiba (PR) e Belo Horizonte (MG). A capital paulista teve médias bem abaixo disso: 160,42 em Língua Portuguesa e 166,86 em Matemática.
As escolas municipais não são obrigadas a participar da avaliação, mas a Escola Municipal de Ensino Fundamental João Antônio Rodrigues, segundo Ieda Monteiro, optou por ser testada já há três anos, com o Saresp. “É importante para nós, porque montamos nossos projetos didáticos baseados nos resultados das avaliações”, argumenta. A diretora da escola, Márcia Regina Maciel, assegura que o bom desempenho no Saresp e no Prova Brasil apenas corroboram os avanços que ela sente no dia-a-dia com as crianças. “Percebo que estão menos tímidos, conversam mais, interrogam. Acho que se realizam diante dos livros e os pais também notam as mudanças, tanto que comentam e procuram ler mais também”.
A mesma satisfação em ver os progressos dos alunos pode ser sentida na Escola Estadual Antônio de Almeida Prado. Em 2005, dois alunos – do 6º e do 7º ano – obtiveram 100% de acertos em Português na avaliação feita pelo governo estadual. “Sabemos que compreendendo o que lê, o aluno se sai melhor em todas as disciplinas”, afirma o diretor da única escola de ensino médio do município, Francisco Régis Zago. Como exemplo, ele cita o desempenho dos alunos na Olimpíada de Química do Estado. A escola foi uma das 100 selecionadas, entre cinco mil, para participar de um evento na capital paulista.
Parte do progresso obtido diante das palavras é creditado na escola ao professor de Português, Sílvio de Lima Rocha. Ele é responsável pelas aulas de leitura e assume que seu entusiasmo pelos livros tem contagiado os alunos. “Ensino a eles que quanto mais concentrados num texto, mais eles viajam, se tornam criativos. Na classe, mantenho uma estante de livros e digo que para aprender é preciso mergulhar no texto.”
Todas as salas de aula da Escola Estadual Antonio de Almeida Prado contam também com uma biblioteca de classe, montada com livros doados pelo MEC. Maria Damásio, responsável pela biblioteca da escola afirma que, embora o local seja muito procurado pelos alunos para pesquisas, sente falta de que os mais jovens retirem mais livros para deleite próprio, com o único objetivo de usufruirem o prazer de uma boa leitura. “Se eles soubessem o que perdem quando não lêem, não é?” Mas, para satisfação de Maria Damásio e outros adultos, os estudantes desta pequena cidade-leitora talvez estejam, aos poucos, descobrindo o que têm a ganhar mergulhando em páginas e mais páginas de boas histórias. É assim que a pequena Iepê já está fazendo a sua própria história.
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Portas e livros abertos à comunidade
Iepê tem uma biblioteca municipal com cerca de nove mil livros catalogados. Mas o trabalho ainda não foi concluído, segundo a responsável pelo lugar, Dorothea Zaganini. Há 10 anos no posto, ela conta que tem conseguido fazer da biblioteca um ponto de encontro importante dos jovens da cidade, seu sonho desde que assumiu.
“Estamos localizados na praça onde eles se reúnem, ao lado da lanchonete principal. Quero que eles gostem cada vez mais daqui”, diz. À frente do trabalho de catalogação está Angelita Maria de Souza, estudante de Letras, também integrante da ONG Amigos da Cultura. “Já fizemos muito sarau de poesias aqui. Sempre temos alguma programação”, explica.
Já a Biblioteca Olavo Bilac, da Escola João Antônio Rodrigues, tem um acervo de cerca de 4 mil obras. A estudante de Letras Débora Rocha, ao lado da pedagoga Ieda Monteiro, é quem ajuda a cuidar do espaço. “Temos um caderno de controle, para marcar que livro saiu, qual o autor, o gênero da obra, quando saiu e para quem foi. Cada pessoa pode ficar uma semana com o livro, mas esse prazo é renovável”, diz Ieda. Ela argumenta que não cobra multa por atraso porque não quer que ninguém tenha medo de pegar livro. “Isso pode assustar as pessoas”.
A biblioteca escolar é aberta a toda comunidade – qualquer pessoa da cidade tem acesso aos livros, revistas e também vídeos e DVDs.
Fonte: Revista LeituraS
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